qadri1_Abdulnasser AlseddikAnadolu Agency via Getty Images_cholera Abdulnasser Alseddik/Anadolu Agency via Getty Images

Aplicar à cólera a solução para a COVID

DACA – Desde que, há dois anos, a COVID-19 engoliu o mundo, o termo “sem precedentes” tornou-se uma espécie de chavão. Mas apesar de o coronavírus ter suscitado desafios únicos numa época de profunda interdependência global, as pandemias não são novas. A pandemia da COVID-19 nem sequer é a única que nos afecta presentemente. Em grande parte do mundo em desenvolvimento, proliferam os surtos de cólera.

Enquanto o vírus SARS-CoV-2 é “recente,” a cólera (uma doença diarreica transmitida pela água e causada pela bactéria Vibrio cholerae) é antiga, assim como o seu histórico de devastação generalizada. A actual pandemia de cólera é a sétima que se verifica no mundo desde o início do século XIX.

Apesar das suas diferenças aparentes, a COVID-19 e a cólera têm muito em comum. Ambas são pelo menos parcialmente controláveis pela vacinação, e ambas se propagam mais facilmente em ambientes superlotados e insalubres. Por conseguinte, para limitar a sua transmissão é vital assegurar a existência de abrigos adequados e reforçar as práticas e as infra-estruturas relativas à água, ao saneamento e à higiene (WASH).

Estas semelhanças explicam porque é que as medidas para limitar a COVID-19, como a redução das viagens e o reforço da vigilância relativamente à higiene pessoal, ocasionaram uma diminuição no número dos casos de cólera. Mas com os governos mundiais a levantarem as restrições associadas à pandemia, a cólera está a regressar em força. No fim de 2021, existiam 16 surtos activos de cólera em todo o mundo.

Contudo, a resposta à COVID-19 ainda comporta lições valiosas para consolidar o combate contra a cólera, começando pela importância da investigação para combater os surtos de doenças. A emergência do SARS-CoV-2 desencadeou um impulso substancial e coordenado na investigação global, que permitiu a tomada de decisões baseada em provas a todos os níveis da prevenção e do controlo. Iniciativas como o Roteiro para a Investigação Global sobre a COVID-19 ajudaram a orientar este esforço, ao garantirem a canalização de recursos para as áreas onde o conhecimento e a inovação eram mais requisitados.

A investigação não é menos importante no combate contra a cólera. Foi por isso que, no ano passado, a Estrutura de Missão Global para o Controlo da Cólera lançou a Agenda para um Roteiro de Investigação sobre a Cólera. Representando a visão colectiva de 177 especialistas globais sobre a cólera e de outras partes interessadas, a agenda identifica as questões mais prioritárias para a investigação. Obter as respostas respectivas será essencial para a prossecução dos objectivos definidos no roteiro global da EMGCC, Acabar com a cólera até 2030.

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Muitas das questões poderiam também, e facilmente, ser encontradas numa agenda de investigação sobre a COVID-19. Por exemplo, qual é a forma mais rápida e económica de distribuir um abastecimento limitado de vacinas? Como podemos reforçar a adopção e a sustentabilidade das medidas de resposta para impedir que a doença atinja níveis epidémicos ou pandémicos? Como podemos envolver-nos de forma significativa com as comunidades em risco para conceber e implementar intervenções? Quais são os sistemas de controlo de doenças mais eficazes, e quando e onde devem ser implementados?

As questões podem ser as mesmas, mas o esforço dedicado à sua satisfação tem sido muito diferente. Com a COVID-19, uma forte vontade política e um investimento significativo permitiram que os investigadores produzissem respostas com rapidez. Apesar de a cólera estar entre nós há muito mais tempo, as soluções permanecem difíceis. Um motivo determinante é que, enquanto a COVID-19 assolou tanto os países desenvolvidos como os países em desenvolvimento, a cólera foi erradicada do Norte Global há mais de 150 anos. É muito mais difícil mobilizar recursos para combater uma doença que afecta as pessoas mais pobres e mais marginalizadas do mundo.

Com uma mera fracção do compromisso subjacente ao combate contra a COVID-19, poderiam garantir-se avanços capazes de salvar vidas na investigação contra a cólera. A vigilância epidemiológica permitiria o mapeamento dos padrões de transmissão. Novos e inovadores exames diagnósticos poderiam aumentar a velocidade, a eficiência e a qualidade da detecção e da confirmação de casos. E novas e melhoradas vacinas fortaleceriam a ligação entre a resposta de emergência e o controlo e prevenção no longo prazo.

É essencial optimizar o momento e a dosagem das vacinas, e saber como envolver as comunidades para garantir que as necessidades das populações marginalizadas são satisfeitas. A transformação do tratamento para comunidades vulneráveis requer estudo sobre o impacto dos antibióticos na transmissão da cólera, e compreender o que permite (e bloqueia) a integração do tratamento da cólera na gestão de casos por parte dos profissionais de saúde comunitária.

Equipados com este conhecimento, os países e os parceiros para a saúde estariam mais bem posicionados para escolher as ferramentas e abordagens mais eficazes à consecução dos seus Planos Nacionais contra a Cólera. Isto, por sua vez, facilitaria a captação de financiamento adicional, o que motivaria uma evolução adicional.

Aprendemos muito durante a pandemia da COVID-19. Escutámos os nossos responsáveis de saúde pública e demos passos para limitar a propagação do vírus: utilizar máscaras faciais, manter o distanciamento social, a quarentena, tomar vacinas e lavar as mãos com maior regularidade. Temos de aproveitar este reforço da sensibilização e esta dinâmica para conseguirmos mais ganhos de saúde pública, não só nas nossas comunidades, mas em todo o mundo.

Isso significa visar outros flagelos, muito mais antigos. Temos as ferramentas de que precisamos para derrotar a cólera, mas ainda nos falta a investigação necessária para identificar como, quando e onde usá-las. Só depois disso poderemos proteger as populações mais vulneráveis do mundo desta doença já demasiado antiga.

https://prosyn.org/YjuXk5ipt