BOSTON – Com mais de 7,5 biliões de dólares devidos a credores externos, os custos das economias emergentes com o serviço da dívida tornam-se cada vez mais pesados precisamente quando estas necessitam de toda a margem fiscal possível para enfrentar a crise da COVID-19. Embora existam razões fortes para anular grande parte desta dívida, muitos intervenientes importantes opõem-se a que tal aconteça, com o argumento de que isso limitaria o acesso futuro destes países aos mercados internacionais, reduzindo dessa forma o investimento e o crescimento.
Na verdade, as evidências que sustentam esta perspectiva são pouco conclusivas. Longe de impulsionarem o investimento e o crescimento de forma fiável, os fluxos financeiros internacionais têm maior probabilidade de contribuir para a volatilidade nos mercados emergentes e nas economias em desenvolvimento. Mesmo assim, há muito que se assume nos círculos académicos e políticos que o financiamento internacional ajuda as economias emergentes a construir instituições mais eficazes, que lhes permitam desenvolver o seu sistema bancário e mercado bolsista, por exemplo. Os adversários do perdão de dívida também argumentam que os mercados emergentes necessitam da “disciplina” proporcionada pelos mercados obrigacionistas internacionais, porque a ameaça da fuga de capitais funciona como restrição à má governação de autocratas e populistas.
Consequentemente, durante a crise europeia da dívida, os gregos foram desincentivados de deixar de cumprir as suas dívidas a bancos estrangeiros, para não destruírem o seu perfil de crédito. E mesmo depois de os eleitores gregos terem rejeitado as condições impostas pela troika de credores oficiais (a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional), o governo de esquerda do país acabou por celebrar um acordo, levando muitos decisores políticos a concluir que a disciplina do mercado tinha funcionado.
Mas esta narrativa já não é verdadeira. Longe de conter os autocratas, o financiamento internacional tem-lhes sido propício. Por exemplo, na África do Sul, entre 2009 e 2018, os fundos estrangeiros continuaram a chegar mesmo depois de ser óbvio que o governo cleptocrático do então presidente Jacob Zuma estava a esvaziar a economia e as instituições do país. Quando Zuma foi finalmente expulso do poder, foi porque o seu próprio partido, o Congresso Nacional Africano, tomou medidas para afastá-lo. A pressão dos mercados internacionais teve pouco a ver com isso.
Da mesma forma, embora os ataques do presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, às instituições do seu país tenham coincidido com um declínio do investimento e do crescimento da produtividade, os investidores estrangeiros salvaram-no. Com o dinheiro a continuar a entrar para financiar um crescente défice de transacções correntes e sustentar uma economia vacilante, Erdoğan conseguiu consolidar o seu domínio, chegando mesmo a implementar um sistema presidencialista que lhe subordina o parlamento e os tribunais. Tal como Zuma, a maior resistência que Erdoğan enfrenta não vem dos mercados internacionais, mas sim da política nacional. Nas eleições municipais do ano passado, o seu partido foi derrotado na maioria das principais cidades da Turquia, enfraquecendo significativamente o seu controlo sobre o poder.
Para além destes exemplos, também existem indícios crescentes de que o financiamento internacional facilitou ostensivamente actividades de corrupção e criminosas em mercados emergentes, como no caso do alegado envolvimento da Goldman Sachs no escândalo da fraude do 1MDB, na Malásia, no valor de 700 milhões de dólares. Nenhum destes casos deveria surpreender. Porque não deveriam as instituições financeiras internacionais aproveitar oportunidades de emprestar, em condições atraentes, a autocratas, ou de melhorar os seus lucros ajudando cleptocratas e empresas suspeitas a manipular contas e a explorar paraísos fiscais?
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Para ultrapassarmos este status quo viciado, deveríamos procurar formas de reestruturação e perdão da dívida que isolem os regimes corruptos. Uma ideia consiste em criar um órgão internacional e imparcial que defina as regras para práticas creditícias justas a aplicar por bancos internacionais. A mesma instituição poderia então determinar se as dívidas correntes de um país foram acumuladas durante governos democráticos, se são o legado de vagas de endividamento cleptocrático e fraudulento, e se o seu reembolso ou o seu serviço imporia dificuldades injustas sobre a população.
Para os países que tivessem contraído empréstimos sob governos democráticos, as dívidas externas poderiam ser reestruturadas em condições generosas, e poderiam ser proporcionadas opções semelhantes aos credores de longo prazo e àqueles que tenham realizado investimento estrangeiro directo no mundo emergente (porque estas formas de crédito têm menor probabilidade de acabar nos bolsos dos autocratas). Para os países no segundo grupo, as “dívidas odiosas” acumuladas no passado e durante governos autocratas ou corruptos deveriam ser perdoadas. Os cidadãos normais não deveriam sofrer as consequências de acordos feitos entre instituições financeiras e políticos que não elegeram. Os investidores que consigam negócios Faustianos com cleptocratas não deveriam beneficiar de protecção internacional.
Quanto ao terceiro grupo – governos que enfrentam custos de reembolso ou de serviço de dívida socialmente intoleráveis – existe um argumento sólido para não empurrar estes países ainda mais para a pobreza, mesmo que as suas dívidas tenham sido contraídas por governos democraticamente eleitos. O pressuposto de que uma vaga intensa de reestruturação e perdão de dívida significaria o fim do capital abundante para os mercados emergente não está bem fundamentado. Mesmo que estes países recusassem a reestruturação ou o perdão, as repercussões financeiras da sua dívida impediriam o investimento adicional em infra-estruturas, no alívio da pobreza e nas novas tecnologias.
De forma igualmente importante, a anulação das dívidas odiosas melhoraria os incentivos que governam os mercados financeiros internacionais, porque os credores teriam de pensar duas vezes antes de apoiar regimes autoritários e corruptos. E esta mudança poderia proporcionar um incentivo para conceber um novo enquadramento para a integração financeira global.
Esta abordagem só funcionará se não se transformar numa condenação generalizada do financiamento internacional. Muitos países em desenvolvimento ainda precisam de recursos para investimento e infra-estruturas, e ainda existem muitos fluxos financeiros internacionais responsáveis e regulamentados que podem aproveitar. Não devemos criar uma situação em que os mercados emergentes e os países em desenvolvimento fiquem liminarmente privados do acesso ao financiamento.
Para tal, a reestruturação e o perdão de dívidas deverão ser claramente enquadrados como uma medida de emergência, que distinga as instituições que agiram devidamente e as que não celebraram acordos com governos corruptos e autoritários. Precisamos de um novo órgão internacional que não só supervisione as regras dos futuros acordos financeiros e monitorize as ilicitudes financeiras, mas que também defenda uma nova estrutura global de normas e padrões. Só isso poderá garantir a legitimidade do sistema aos olhos dos países em desenvolvimento e das instituições financeiras internacionais.
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While the Democrats have won some recent elections with support from Silicon Valley, minorities, trade unions, and professionals in large cities, this coalition was never sustainable. The party has become culturally disconnected from, and disdainful of, precisely the voters it needs to win.
thinks Kamala Harris lost because her party has ceased to be the political home of American workers.
This year’s many elections, not least the heated US presidential race, have drawn attention away from the United Nations Climate Change Conference (COP29) in Baku. But global leaders must continue to focus on combating the climate crisis and accelerating the green transition both in developed and developing economies.
foresees multilateral development banks continuing to play a critical role in financing the green transition.
BOSTON – Com mais de 7,5 biliões de dólares devidos a credores externos, os custos das economias emergentes com o serviço da dívida tornam-se cada vez mais pesados precisamente quando estas necessitam de toda a margem fiscal possível para enfrentar a crise da COVID-19. Embora existam razões fortes para anular grande parte desta dívida, muitos intervenientes importantes opõem-se a que tal aconteça, com o argumento de que isso limitaria o acesso futuro destes países aos mercados internacionais, reduzindo dessa forma o investimento e o crescimento.
Na verdade, as evidências que sustentam esta perspectiva são pouco conclusivas. Longe de impulsionarem o investimento e o crescimento de forma fiável, os fluxos financeiros internacionais têm maior probabilidade de contribuir para a volatilidade nos mercados emergentes e nas economias em desenvolvimento. Mesmo assim, há muito que se assume nos círculos académicos e políticos que o financiamento internacional ajuda as economias emergentes a construir instituições mais eficazes, que lhes permitam desenvolver o seu sistema bancário e mercado bolsista, por exemplo. Os adversários do perdão de dívida também argumentam que os mercados emergentes necessitam da “disciplina” proporcionada pelos mercados obrigacionistas internacionais, porque a ameaça da fuga de capitais funciona como restrição à má governação de autocratas e populistas.
Consequentemente, durante a crise europeia da dívida, os gregos foram desincentivados de deixar de cumprir as suas dívidas a bancos estrangeiros, para não destruírem o seu perfil de crédito. E mesmo depois de os eleitores gregos terem rejeitado as condições impostas pela troika de credores oficiais (a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional), o governo de esquerda do país acabou por celebrar um acordo, levando muitos decisores políticos a concluir que a disciplina do mercado tinha funcionado.
Mas esta narrativa já não é verdadeira. Longe de conter os autocratas, o financiamento internacional tem-lhes sido propício. Por exemplo, na África do Sul, entre 2009 e 2018, os fundos estrangeiros continuaram a chegar mesmo depois de ser óbvio que o governo cleptocrático do então presidente Jacob Zuma estava a esvaziar a economia e as instituições do país. Quando Zuma foi finalmente expulso do poder, foi porque o seu próprio partido, o Congresso Nacional Africano, tomou medidas para afastá-lo. A pressão dos mercados internacionais teve pouco a ver com isso.
Da mesma forma, embora os ataques do presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, às instituições do seu país tenham coincidido com um declínio do investimento e do crescimento da produtividade, os investidores estrangeiros salvaram-no. Com o dinheiro a continuar a entrar para financiar um crescente défice de transacções correntes e sustentar uma economia vacilante, Erdoğan conseguiu consolidar o seu domínio, chegando mesmo a implementar um sistema presidencialista que lhe subordina o parlamento e os tribunais. Tal como Zuma, a maior resistência que Erdoğan enfrenta não vem dos mercados internacionais, mas sim da política nacional. Nas eleições municipais do ano passado, o seu partido foi derrotado na maioria das principais cidades da Turquia, enfraquecendo significativamente o seu controlo sobre o poder.
Para além destes exemplos, também existem indícios crescentes de que o financiamento internacional facilitou ostensivamente actividades de corrupção e criminosas em mercados emergentes, como no caso do alegado envolvimento da Goldman Sachs no escândalo da fraude do 1MDB, na Malásia, no valor de 700 milhões de dólares. Nenhum destes casos deveria surpreender. Porque não deveriam as instituições financeiras internacionais aproveitar oportunidades de emprestar, em condições atraentes, a autocratas, ou de melhorar os seus lucros ajudando cleptocratas e empresas suspeitas a manipular contas e a explorar paraísos fiscais?
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Para os países que tivessem contraído empréstimos sob governos democráticos, as dívidas externas poderiam ser reestruturadas em condições generosas, e poderiam ser proporcionadas opções semelhantes aos credores de longo prazo e àqueles que tenham realizado investimento estrangeiro directo no mundo emergente (porque estas formas de crédito têm menor probabilidade de acabar nos bolsos dos autocratas). Para os países no segundo grupo, as “dívidas odiosas” acumuladas no passado e durante governos autocratas ou corruptos deveriam ser perdoadas. Os cidadãos normais não deveriam sofrer as consequências de acordos feitos entre instituições financeiras e políticos que não elegeram. Os investidores que consigam negócios Faustianos com cleptocratas não deveriam beneficiar de protecção internacional.
Quanto ao terceiro grupo – governos que enfrentam custos de reembolso ou de serviço de dívida socialmente intoleráveis – existe um argumento sólido para não empurrar estes países ainda mais para a pobreza, mesmo que as suas dívidas tenham sido contraídas por governos democraticamente eleitos. O pressuposto de que uma vaga intensa de reestruturação e perdão de dívida significaria o fim do capital abundante para os mercados emergente não está bem fundamentado. Mesmo que estes países recusassem a reestruturação ou o perdão, as repercussões financeiras da sua dívida impediriam o investimento adicional em infra-estruturas, no alívio da pobreza e nas novas tecnologias.
De forma igualmente importante, a anulação das dívidas odiosas melhoraria os incentivos que governam os mercados financeiros internacionais, porque os credores teriam de pensar duas vezes antes de apoiar regimes autoritários e corruptos. E esta mudança poderia proporcionar um incentivo para conceber um novo enquadramento para a integração financeira global.
Esta abordagem só funcionará se não se transformar numa condenação generalizada do financiamento internacional. Muitos países em desenvolvimento ainda precisam de recursos para investimento e infra-estruturas, e ainda existem muitos fluxos financeiros internacionais responsáveis e regulamentados que podem aproveitar. Não devemos criar uma situação em que os mercados emergentes e os países em desenvolvimento fiquem liminarmente privados do acesso ao financiamento.
Para tal, a reestruturação e o perdão de dívidas deverão ser claramente enquadrados como uma medida de emergência, que distinga as instituições que agiram devidamente e as que não celebraram acordos com governos corruptos e autoritários. Precisamos de um novo órgão internacional que não só supervisione as regras dos futuros acordos financeiros e monitorize as ilicitudes financeiras, mas que também defenda uma nova estrutura global de normas e padrões. Só isso poderá garantir a legitimidade do sistema aos olhos dos países em desenvolvimento e das instituições financeiras internacionais.