krauss44_thierry monasse_pool_getty Images_merkel Thierry Monasse/Pool/Getty Images

O pacto de Fausto da Europa

NOVA YORK – A segunda onda de contágios da covid-19 está atingindo a Europa com mais força do que muitos esperavam. A expectativa de uma recuperação em V vem dando lugar ao medo de uma recessão dupla, sugerindo que não haverá um retorno rápido às regras orçamentárias tradicionais da União Europeia. E, ainda mais preocupante, a Europa agora se vê forçada a uma escolha entre dois objetivos, ambos críticos à sua viabilidade no longo prazo, enquanto bloco supranacional político e econômico. Agora, mais do que nunca, o compromisso da UE com o estado de direito parece estar com o pescoço a prêmio.

Não é uma notícia de todo ruim. Por causa das decisões políticas ambiciosas dos líderes da UE, as relações norte-sul dentro da União estão em situação bastante sólida como há tempos não se via. Um sinal disso é que os spreads entre as taxas de juros alemã e italiana estão em baixa histórica, o que indica que a posição da Itália no euro é hoje sólida. A “ansiedade do spread” quanto à sustentabilidade do euro vem diminuindo em toda a região sul da eurozona.

Esqueçam as barreiras políticas introduzidas recentemente pelos estados-membro centro-europeus, com suas ameaças de veto ao orçamento e novo fundo de recuperação voltado à covid-19 da UE. Manter a tão aguardada convergência política e econômica norte-sul será a prioridade número 1 da UE nas próximas semanas e meses.

Embora a redução dos spreads das taxas de juros inicialmente refletisse as políticas de flexibilização quantitativa (QE, na sigla original em inglês) do Banco Central Europeu, foi o novo fundo de recuperação da UE – chamado de Próxima Geração UE quem trouxe as taxas a baixas recorde. Investidores estão parando de vender títulos de países endividados do sul porque perceberam que políticos do norte, em particular da Alemanha, estão dispostos a oferecer o apoio necessário (em subsídios ou empréstimos) para prevenir um desmantelamento do euro.

Após o anúncio do Próxima Geração UE, tivemos notícias ainda melhores. Em outubro, a primeira emissão de títulos corona que serviriam para financiar o programa ficou completamente superlotada. Os investidores fizeram mais de €233 bilhões (US$276 bilhões) em ofertas, superando em muito os €17 bilhões iniciais ofertados. Esta reação do mercado enviou um sinal inequívoco de que um programa de recuperação plenamente financiado de US$ 750 bilhões logo seria realidade.

Apesar da superlotação, Hungria e Polônia têm colocado o futuro do fundo em dúvida ao ameaçar vetá-lo a menos que a UE retire a exigência de condicionar o pagamento de fundos da UE à adesão dos países-membro ao estado de direito. O fato de que os spreads norte-sul ainda estão com altas históricas apesar deste novo tumulto político intra-UE reflete a confiança de que os políticos europeus resolverão as coisas antes da reunião de cúpula dos dias 10 e 11 de dezembro, último dia do prazo para fechar um acordo orçamentário antes de 2021.

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Com o prêmio da unidade norte-sul na mesa, haverá pressão intensa para ganhar os dois desgarrados. Extorsão é bastante provável, já que tanto Hungria e Polônia têm poder de veto e vontade política de usá-lo. Mais precisamente, os dois governos sabem que esta é provavelmente sua última e melhor chance de barrar a imposição de condições à liberação de fundos da UE no futuro.

A atriz-chave, como sempre, é a chanceler alemã, Angela Merkel. Hoje no crepúsculo de sua longa chancelaria, Merkel não permitirá que o Próxima Geração UE – que sem dúvida será um pedaço grande de seu legado – seja desvirtuado. Pôr em risco a solidariedade norte-sul e a recém-conquistada coesão da eurozona é um preço alto demais a se pagar por enfrentar Hungria e Polônia.

Claro que haverá a tradicional bandeira branca política. Hungria e Polônia vão fingir compromisso com os princípios democráticos (que os dois países continuarão violando), e os líderes da UE vão fingir que acreditam neles. E assim, o fundo de recuperação custará à Europa muito mais do que deveria.

Ainda assim, pensando no longo prazo, o leilão de títulos da Comissão Europeia trouxe boas notícias para o BCE, que deve se beneficiar de um efeito cascata importante com o retorno da política fiscal robusta. Os empréstimos do Próxima Geração UE aos países-membro endividados vão tirar parte da pressão do BCE, após anos de política monetária cuidando de todo o trabalho pesado.

Segundo a Reuters, o conselho geral do BCE está debatendo como pode “oferecer apoio menos generoso a governos endividados quando preparar um pacote de estímulo ainda maior no mês que vem, para forçá-los a disputar empréstimos da União Europeia vinculados a investimentos produtivos”. Ao reduzir a centralidade das QE no apoio à solidariedade europeia, este resultado finalmente tornaria o conselho geral do BCE um órgão menos tumultuado.

Esta mudança é especialmente promissora no longo prazo. As intermináveis brigas entre falcões e pombos do BCE sobre QE não são apenas cansativas; elas também vêm enfraquecendo a solidariedade europeia em um momento de revanchismo russo, imprevisibilidade americana e assertividade chinesa, além de todas as turbulências insinuadas pelo Brexit. Contra este pano de fundo geopolítico sinistro, a promessa do fundo de recuperação de reduzir divisões no conselho geral chega bem a tempo. Não é por acaso que a presidente do BCE, Christine Lagarde, quer que os políticos da UE consagrem o Próxima Geração UE como mecanismo de política econômica permanente, em vez de temporário.

Jean Monnet, um dos primeiros expoentes da integração europeia após a Segunda Guerra Mundial, fez a célebre observação de que o projeto europeu “sempre avança por meio de crises.” Neste sentido, a pandemia representa uma oportunidade única de avançar na integração europeia de modo nunca visto antes. Mesmo que os populistas intolerantes da Europa na Hungria e Polônia pareçam fugir de novo de suas responsabilidades, a posição deles talvez seja muito mais delicada no futuro. Uma UE que não precisa mais se preocupar com o colapso do euro vai ter muito mais tempo, energia e determinação para encarar seus inimigos internos.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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