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Estará mesmo a democracia em retrocesso?

BERLIM – A democracia liberal está, mais uma vez, sob ameaça em todo o mundo. Já assistimos antes a esses desafios, de muitas formas, e a democracia acabou por sair vitoriosa. Será que desta vez se justifica uma confiança semelhante? As ameaças antidemocráticas não significam, certamente, o fim do sistema. Mas, em vez de se agarrarem à confiança otimista que depositam no inevitável triunfo global da democracia, os seus defensores têm agora de adotar uma mentalidade realista baseada em provas empíricas – principalmente quando os dados desafiam suposições antigas e levantam questões desconfortáveis.

O realismo exige que rejeitemos previsões apocalípticas sobre a iminente queda do governo representativo. Mas também significa abandonar a crença teleológica de que a democracia liberal triunfará inevitavelmente em todo o lado. Podemos reconhecer os avanços impressionantes que países não democráticos alcançaram, sem perder de vista as evidências esmagadoras de que as democracias ainda proporcionam uma qualidade de vida média muito superior à dos regimes autocráticos.

O mundo de hoje ainda oferece amplas oportunidades para o progresso incremental em direção a uma maior inclusão e responsabilidade democrática e a uma maior qualidade de vida. Mas como os países, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico, enfrentam o seu próprio conjunto de grandes desafios a longo prazo, as políticas têm de ser adaptadas às suas dinâmicas de governação específicas. Não há soluções rápidas ou universais.

Rumo a uma era de iliberalismo?

Os indícios de uma “recessão democrática” global têm-se acumulado desde que foi identificada pela primeira vez há quase uma década. Instituições de investigação, como a organização Freedom House e o instituto V-Dem, e publicações de destaque como a The Economist, descobriram que a democracia liberal continua a perderterreno para a autocracia e o iliberalismo. Regimes como China, Hungria, Rússia, Arábia Saudita, Turquia, entre outros, estão cada vez mais autoconfiantes e promovem os seus modelos económicos e políticos como sendo mais propícios à estabilidade e à prosperidade do que os dos países democráticos.

Isto representa um desafio crescente para os defensores dos valores liberais. Durante grande parte da última metade do século, pouco se discutiu sobre qual sistema produzia melhores resultados: era geralmente expectável que as autocracias ficassem atrás das democracias em quase todos os indicadores de desenvolvimento. No entanto, esse grupo de países conseguiu reduzir a diferença nos últimos anos, embora a maioria ainda esteja atrasada em termos absolutos no que diz respeito ao bens públicos que fornecem. Dos 145 países incluídos no Índice de governação Berggruen (BGI, na sigla em inglês) de 2024, quase metade apresentou tanto um aumento na qualidade de vida como uma diminuição na responsabilidade democrática entre 2000 e 2021.

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Esta constatação coloca um desafio ideológico e político à sabedoria convencional. Poderá a ascensão de uma alternativa potencialmente bem-sucedida destronar o liberalismo como o único sobrevivente da história? O que significa o sucesso percecionado da autocracia para o debate académico sobre o papel da democracia na promoção da estabilidade, prosperidade e sustentabilidade? Ao utilizarmos o BGI, descobrimos que, embora os caminhos variem, dependendo das características dos países discutidos, todos podem encontrar ainda uma forma de “navegar contra o vento” em direção à democracia, como o economista Albert Hirschman disse. O progresso continua a ser possível, mas exigirá um padrão incremental e sinuoso, e está longe de estar garantido.

Os grandes vencedores

Utilizando três medidas de desempenho de governação – responsabilidade democrática, capacidade estatal e provisão de bens públicos – o BGI identifica quatro grupos de países com padrões de desempenho distintos e características comuns em termos de economia, demografia e estabilidade política. Essencialmente, cada grupo enfrenta desafios diferentes no que diz respeito ao papel da democracia e à qualidade de vida.

Em primeiro lugar, existem atualmente 36 estados democráticos bem-sucedidos no mundo, um grupo que inclui a Austrália, a maioria dos países da União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos. Os membros deste grupo têm o melhor desempenho em todas as três dimensões de governação. Mas, embora todos tenham economias altamente globalizadas e altos PIB per capita, eles diferem cada vez mais em termos de estabilidade política e social. A Estónia, por exemplo, continuou a ter um bom desempenho nessas dimensões, enquanto os EUA, nos últimos anos, não o fizeram. Acreditamos que o futuro da democracia neste grupo depende de como os governos gerem a economia global e se conseguem criar a capacidade estatal interna necessária para alcançar tanto a coesão social como a provisão adequada de bens públicos num ambiente internacional competitivo.

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Embora este grupo seja relativamente bem-sucedido em todas as medidas, a década seguinte à crise financeira global de 2008 mostra que a austeridade prolongada e a complacência das elites podem ser perigosas para a democracia, mesmo em países onde parece estar segura. Os EUA parecem ser um exemplo disso mesmo. A sua pontuação média de responsabilidade democrática foi impressionante, 96 entre 2010 e 2015 (entre as melhores do mundo), mas depois caiu precipitadamente, atingindo 84 em 2020. A capacidade estatal dos EUA também atrofiou, caindo de 79 em 2011 para 64 em 2020.

Não é coincidência que essas mudanças tenham ocorrido durante a presidência de Donald Trump, marcada por agitações para o sistema eleitoral e o estado administrativo. A tomada de controlo de Trump sobre a base do Partido Republicano e os recursos organizacionais demonstra que até as democracias aparentemente mais consolidadas são suscetíveis a forças iliberais e à rápida erosão institucional. Embora algumas métricas sugiram que os EUA possam ter recuperado nos últimos anos, as eleições de 2024 poderão facilmente reverter a tendência.

O segundo grupo compreende 33 estados autocráticos e iliberais bem-sucedidos, como Rússia, China, Emirados Árabes Unidos e Turquia. Estes países têm pontuações mais baixas em termos de responsabilidade democrática, e geralmente classificações médias ou abaixo da média no que diz respeito à capacidade estatal, mas conseguem apresentar uma pontuação média ou acima da média em termos de qualidade de vida. Apesar deste sucesso relativo, estes países enfrentam numerosos desafios, inclusive altos níveis de fuga de cérebros, desigualdades económicas e sociais, reivindicações nacionais significativas e conflitos internos frequentemente oprimidos.

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Estes países estão a tentar fornecer provas para o que chamamos de “tese da suficiência autocrática”, que sustenta que a capacidade estatal é suficiente para garantir uma maior qualidade de vida, mesmo na ausência de uma robusta responsabilidade democrática. O exemplo mais proeminente de um país que esteja a seguir este caminho é a China. Entre 2000 e 2021, a qualidade da sua democracia caiu de uma pontuação já por si baixa, passando de 27 para 20. Durante este mesmo período, no entanto, a capacidade estatal aumentou quatro pontos, de 38 para 42. O mais importante é que a provisão de bens públicos aumentou dramaticamente, de 60 para 75. Esta capacidade de aumentar os bens públicos na ausência de democracia representa a ameaça ideológica mais significativa para o modelo liberal. Mas resta saber se a tendência se manterá à medida que a China se vai aproximando dos níveis de qualidade de vida comparáveis aos das democracias ricas.

Trapalhada no meio

O terceiro grupo contém estados ineficazes. Apesar de níveis aproximadamente médios de responsabilidade democrática e capacidade estatal, estes 37 países – incluindo Peru, Tunísia, África do Sul, Indonésia, Filipinas e Bolívia – debatem-se para proporcionar uma qualidade de vida ao nível da sua responsabilidade democrática e capacidade estatal. Como grupo, este países são medianos em quase todos os indicadores económicos, demográficos e sociopolíticos. A democracia não está a ser acompanhada por melhorias nas outras duas dimensões. Se esta desconexão persistir, pode levar a uma perda de legitimidade e a um deslize em direção ao autoritarismo.

Estes estados podem ser representativos do fracasso da “tese da suficiência democrática”, que assume que a democracia por si só é suficiente para uma maior qualidade de vida a médio e longo prazo. Por exemplo, a democracia tunisina teve uma ascensão notável entre 2010 e 2021, com a sua pontuação de responsabilidade democrática a subir de 31 para 79, e a sua pontuação de capacidade estatal a aumentar de 34 para 55. E, no entanto, não conseguiu traduzir o seu renascimento democrático numa vida melhor para os seus cidadãos: a provisão de bens públicos cresceu apenas quatro pontos, de 73 para 77.

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O último grupo inclui 39 estados em dificuldades, como Camboja, Egito, Guatemala, Nigéria e Venezuela. Estes países geralmente apresentam um desempenho de governação fraco em todas as três dimensões e tendem a registar um PIB per capita mais baixo, uma maior probabilidade de conflito armado e uma menor estabilidade política. Muitos têm estado aprisionados num ciclo vicioso de conflitos internos e más governações há décadas.

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À semelhança dos estados ineficazes, também são vulneráveis à narrativa autocrática de que a capacidade estatal é a chave para o desenvolvimento. Representam, portanto, uma frente decisiva na batalha ideológica entre democracia e autocracia. Debrucemo-nos sobre o exemplo do Camboja, que sofreu um declínio democrático substancial, caindo de 48 em 2000 para 32 em 2021, mesmo enquanto a capacidade estatal permaneceu praticamente constante (24 contra 22). Durante o mesmo período, a provisão de bens públicos melhorou, subindo de 29 para 51. Estes resultados podem indicar a outros que a qualidade de vida pode ser melhorada, mesmo durante períodos de declínio democrático.

Muitas questões

Estas constatações levantam várias questões preocupantes. Se países não democráticos conseguem aumentar a qualidade de vida, isso significa que a democracia é menos relevante do que se supunha anteriormente? Pode de facto ser o caso, pelo menos a médio prazo. Afinal de contas, o “modelo de negócio” baseado em indústrias extrativas das autocracias bem-sucedida, como os estados do Golfo e a Rússia. parece relativamente estável, bem como a dependência extremamente enfatizada da China nas exportações. Mas as oportunidades de outros países adotarem o modelo de negócio russo ou chinês parecem bastante limitadas.

Ainda assim, será que a crescente influência das “autocracias bem-sucedidas” aponta para um modelo alternativo que coloca os antigos princípios da teoria da modernização contra o chamado Consenso de Pequim? Quase de certeza. A ascensão altamente visível dos regimes não democráticos representa um verdadeiro desafio para o sucesso contínuo do grupo democrático e a sua atratividade para outros países. Mas isso é em parte sobre quem tem a narrativa vencedora, e em parte sobre as oportunidades únicas disponíveis para cada país na economia globalizada de hoje.

Por fim, será que existe uma maneira clara de melhorar as perspetivas imediatas dos países nos terceiro e quarto grupos? Provavelmente não. Os estados ineficazes e em dificuldades estão posicionados para permanecer em padrões assíncronos em que a democracia pode parecer estabelecida, apenas para ser desafiada e revertida. A capacidade estatal e a provisão de bens públicos podem continuar a desenvolver-se ao lado dessas mudanças, mas o progresso pode ser lento e os retrocessos frequentes.

Em suma, as tendências recentes lançam dúvidas sobre a narrativa liberal esperançosa que dominou a primeira década após a Guerra Fria. Já não podemos assumir que os países irão, inevitavelmente, convergir em direção à democracia e à prosperidade, como previsto no paradigma de modernização há muito defendido pelo Ocidente.

Rumo a um novo realismo

Tendo em conta que as democracias liberais bem-sucedidas provavelmente enfrentarão ventos contrários significativos nos próximos anos, é necessário haver uma abordagem política mais pró-ativa para proteger os grupos populacionais vulneráveis contra o impacto negativo da globalização económica e das mudanças tecnológicas. Estes são problemas que muitas democracias liberais – com especial atenção para os EUA – ignoraram durante muito tempo. Esta negligência pode criar um ciclo vicioso, uma vez que as regiões expostas a choques económicos negativos acabam por apoiar os partidos populistas.

Temos, também, de reconhecer os limites do desenvolvimento democrático nos países autocráticos, tendo em conta os modelos relativamente estáveis e economicamente bem-sucedidos dos quais alguns deles foram pioneiros. Desrespeitar o progresso real que os países não democráticos alcançaram não fortalecerá o argumento a favor da democracia. Em vez disso, devemos enfatizar que as autocracias têm geralmente piores resultados ao longo do tempo e que esta tendência pode ainda vir a confirmar-se.

Ao mesmo tempo, não devemos ver o retrocesso democrático como um processo inexorável. Conforme temos assistido na Polónia, ao longo do último ano, os regimes iliberais podem cair, dando lugar a uma renovação democrática. As autocracias frequentemente desenvolvem uma falsa estabilidade, deixando os observadores chocados quando caem repentinamente. Convém recordar o declínio abrupto do comunismo europeu. Os autoritários de hoje não estão imunes a partilhar um destino semelhante.

Por último, o novo realismo exige que reconheçamos que muitos países nos grupos de estados ineficazes e em dificuldades têm um longo e acidentado caminho pela frente. Mas embora não existam soluções rápidas, o caminho em direção à democracia e a uma maior qualidade de vida permanece aberto. Vale a pena lembrar que até os EUA não se tornaram uma democracia plena até à década de 1960, com a promulgação da Lei dos Direitos Civis e da Lei dos Direitos de Voto; ou que a Suíça, um dos países mais ricos e democráticos do mundo, concedeu o voto às mulheres apenas em 1971; ou que a Alemanha, o Japão e a Áustria – agora democracias ricas e estáveis – foram monarquias autocráticas (com fortes capacidades estatais e provisões razoáveis de bens públicos) há pouco mais de um século.

A democracia liberal ao estilo ocidental não é inevitável, porque a história não tem um objetivo ou propósito – não tem um “fim”. O que ela tem é atividade humana, lutas ideológicas e conflitos políticos. Uma vez que o futuro está sempre por escrever, a democracia nunca pode parar de dar provas do seu valor.

O Índice de governação Berggruen é um projeto conjunto do Berggruen Institute, da Luskin School of Public Affairs, da UCLA, e da Hertie School.

https://prosyn.org/tdJd6F8pt