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COVID e o colapso nervoso da economia conservadora

CHICAGO – Um artigo recente no Wall Street Journal expõe o buraco negro em que o pensamento econômico conservador mergulhou desde o auge de sua influência na década de 1980. Os economistas da Universidade de Chicago Casey B. Mulligan e Tomas J. Philipson, ambos ex-servidores no governo de Donald Trump, usaram a pandemia de covid-19 para defender o abandono do que consideram o consenso entre os economistas: “que o objetivo da política governamental é corrigir as falhas de mercado.”

Virando de cabeça para baixo este ditado, eles argumentam que “a política governamental falha com muito mais frequência” do que os mercados, e que os mercados corrigem a política governamental resgatando os cidadãos das decisões terríveis que os governos costumam tomar. Portanto, a pandemia de covid-19 foi o resultado de uma política governamental. Ou o vírus escapou de um laboratório de Wuhan que recebera financiamento do governo americano ou se espalhou porque as autoridades chinesas não informaram o mundo a tempo, e porque o governo americano deu voltas em sua comunicação a respeito de máscaras faciais e bloqueios.

Mulligan e Philipson argumentam então que foi a iniciativa privada que “controlou rapidamente” a pandemia (tudo graças a Trump, é claro), embora o vírus continue fora de controle. “Tirar o governo do caminho foi essencial”, escrevem eles. Esse era “o objetivo da Operação Warp Speed do Presidente Trump”.

A Operação Warp Speed foi de fato um sucesso, mas foi também uma intervenção governamental clássica no mercado livre. A um custo de mais de US$ 10 bilhões, ela foi criada para corrigir uma falha de mercado - exatamente o oposto do que Mulligan e Philipson afirmam. A falha do mercado foi a falta de incentivos para que as empresas privadas inventassem e distribuíssem uma vacina, presumivelmente porque os custos e riscos não poderiam justificar o retorno se elas fossem bem-sucedidas. O governo interveio inundando as empresas de dinheiro, garantindo um mercado e providenciando assessoria técnica e coordenação.

Essa intervenção não foi diferente, em espírito, dos requisitos de máscara e dos lockdowns, que também resolvem uma falha de mercado. Sem regulamentação governamental, muitos indivíduos e empresas externalizariam o risco de transmitir infecções a outras pessoas, deixando de tomar as devidas precauções.

Uma falha de mercado acontece sempre que as ações de um agente privado geram custos sociais que excedem os custos privados. Esses casos são onipresentes. Quando as pessoas são racionais e amorais (como os economistas normalmente presumem que sejam), elas têm todos os incentivos para jogar lixo nos rios, dirigir mais rápido do que é seguro para pedestres, ciclistas e outros motoristas, além de passar doenças contagiosas para outras pessoas, caso se sintam bem o suficiente para sair de casa. A única coisa que evita falhas de mercado é a lei, que é criada e aplicada pelo governo. A ideia de que “falhas do governo” são mais comuns ou piores do que as falhas de mercado é incoerente. Sem um governo, não haveria nada além de falhas de mercado.

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É verdade que os governos cometem erros. Talvez a China tenha regulamentado de modo insuficiente o laboratório de Wuhan, ou o governo dos EUA tenha enviado recursos a um laboratório estrangeiro de modo imprudente, sem verificar primeiro se ele operava com segurança. Mas qual é a alternativa? Há pesquisadores em todo o mundo estudando e modificando vírus perigosos para desenvolver vacinas e terapias contra eles. Quando feito com segurança, esse trabalho é valioso. Em um mercado livre para essa pesquisa e desenvolvimento, o governo não imporia nenhuma regulamentação de segurança aos laboratórios particulares. Os pesquisadores (e qualquer outra pessoa) teriam permissão para operar como quisessem.

Será que é isso o que Mulligan e Philipson defendem de fato? Claramente, a única solução para o fracasso do governo é uma política governamental melhor, e não nenhuma política governamental. A eliminação do envolvimento do governo na pesquisa de vacinas - tanto para promovê-la quanto para regulá-la - seria desastrosa.

Mulligan e Philipson também podem ter argumentado que o Food and Drug Administration (Departamento de Administração de Alimentos e Drogas) ou os Centers for Disease Control and Prevention (Centros para Controle e Prevenção de Doenças) dos EUA deveriam ser abolidos, ou defendido o fim da enorme gama de leis federais e estaduais que as autoridades de saúde pública usaram para fechar negócios e decretar uso obrigatório de máscaras. Essas agências e estatutos permitem que o governo trate de problemas de saúde pública, incluindo doenças contagiosas - uma falha de mercado por excelência.

A autorização de emergência da FDA tem sido importante para superar as dúvidas dos hesitantes em vacinar, enquanto as diretrizes dos CDC - por mais frustrantes que sejam - ajudaram as autoridades locais de saúde pública a entender suas opções. Essas intervenções do governo foram uma dádiva divina para as empresas, que confiaram nelas para determinar como tratar funcionários e clientes. (Ao contrário do que afirmam Mulligan e Philipson, as empresas não chegaram a essas descobertas por conta própria.)

Em uma declaração notável, Mulligan e Philipson escrevem que “os políticos elaboram uma política tributária para favorecer certos grupos de interesse, mas o setor privado corrige essas falhas substituindo-as por atividades menos tributadas”. Esta, aparentemente, é outra maneira pela qual os "mercados" nos salvam do "fracasso do governo".

Mas, na verdade, quando os economistas usam a palavra "imposto", eles se referem não apenas a impostos sobre a renda, mas, de forma mais ampla, a sanções impostas a poluidores, fraudadores, criminosos, motoristas imprudentes, instituições financeiras que colocam o dinheiro de seus clientes em risco , e qualquer outra pessoa que cause dano às outras. Quando os atores privados respondem substituindo atividades menos tributadas, mas funcionalmente semelhantes, isso é chamado de “arbitragem regulatória”, e é um enorme problema sempre que a atividade tributada, como a poluição, causa danos (como geralmente acontece).

O argumento “governo-mau-mercado-bom” fez bastante sucesso na década de 1980. Mas recebeu um duro golpe com a crise financeira de 2008, quando o “bom” governo, liderado pelo Federal Reserve americano, resgatou os mercados financeiros da autodestruição causada pela desregulamentação promovida pelos defensores do livre mercado. Outro golpe veio com a pandemia, que provavelmente surgiu em um mercado (aberto) livre de Wuhan, onde as pessoas podiam comprar e vender animais vivos sem prestar a devida atenção ao risco de infecção zoonótica.

 Programas governamentais e intervenções, como decretos de uso obrigatório de máscaras, ajudaram a mitigar os piores efeitos da pandemia. A principal conquista de Trump foi usar o governo para criar as condições para o rápido desenvolvimento de vacinas; seu maior fracasso foi não ir além disso e ter minado os esforços dos governos estaduais e locais para controlar a pandemia.

Mulligan e Philipson são economistas talentosos. É um mistério que vejam na pior falha de mercado em décadas uma oportunidade para argumentar que os mercados resolvem os problemas criados pelo governo. Redefinir uma intervenção governamental imensa como “sair do caminho dos negócios” parece, na melhor das hipóteses, um esforço para racionalizar o oportunismo político do ex-chefe deles, tratando seus múltiplos fracassos em usar o governo para enfrentar a pandemia como alinhadas com sua única conquista real. Esse tipo de argumento dificilmente resgata a economia de livre mercado de seus últimos fracassos morais e intelectuais, e só vai semear a confusão pública à medida que os governos se preparam para enfrentar outra onda de infecções.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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