CAMBRIDGE – Em 1989, o economista britânico John Williamson batizou o que viria a ser a exportação intelectual que definiria a era da globalização: o Consenso de Washington. Inicialmente uma referência às políticas adotadas para enfrentar a turbulência macroeconômica na América Latina, o termo rapidamente se transformou nos canônicos “ dez mandamentos ” do desenvolvimento.
Durante pelo menos duas décadas depois disso, os evangelistas do “consenso” – o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Tesouro dos EUA (todos com sede em Washington) – pregaram a ortodoxia com zelo quase religioso. O fim da Guerra Fria significou que o evangelho poderia ser levado tanto aos países recentemente descolonizados (como “política de desenvolvimento”) quanto às “economias de transição” pós-comunistas (muitas vezes sob a forma de “terapia de choque”). O modelo ocidental – democracia liberal combinado com mercados livres – representou o “fim da história” e, uma vez que o Ocidente havia triunfado, tudo o que restou foi converter o “o que sobrou” à única fé verdadeira.
Trinta e cinco anos depois, temos amplas evidências para avaliar o histórico do Consenso de Washington. Uma conclusão clara é que sua abordagem de tamanho único frequentemente amplificou eventos macroeconômicos (como a crise financeira asiática de 1997) e reduziu as economias em desenvolvimento a locais para fábricas que exploram empregados. Esses países acabaram numa corrida para o fundo do poço, ao tentarem superar uns aos outros em termos de custos trabalhistas – o que significou salários mais baixos e menos segurança no trabalho. Tragédias como o colapso do Rana Plaza em 2013, que matou 1.134 pessoas e feriu outras 2.000, tornaram-se quase inevitáveis.
Além disso, nenhum desses países jamais se tornou uma história de sucesso. Os “milagres do desenvolvimento” que decisores políticos e acadêmicos agora fetichizam – Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, China, Índia – afastaram-se todos do Consenso de Washington ao tornarem o governo em um participante ativo no desenvolvimento. Alcançaram um crescimento rápido e não só fecharam a lacuna com muitas economias ocidentais, como até as ultrapassaram. A Índia ultrapassou agora o seu antigo mestre colonial, a Grã-Bretanha, para se tornar a quinta maior economia do mundo.
Entretanto, desde a crise financeira global de 2008, muitos países do Norte Global estão vivendo o que costumavam ser considerados “problemas do Terceiro Mundo”: crescimento em declínio, desigualdade galopante, instituições em falência, um consenso político fragmentado, corrupção, protestos em massa e sentimento antiglobalização. A brilhante linha vermelha que o Consenso de Washington pretendia traçar entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento tornou-se cada vez mais tênue.
Por volta de 2009, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown– seguindo os passos de influentes economistas como Joseph E. Stiglitz e Dani Rodrik – declarou morto o Consenso de Washington. É verdade que sua vida coincidiu com a criação do Índice do Desenvolvimento Humano (que as Nações Unidas vem produzindo desde 1990); os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e seu sucessor, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável; a Agenda de Desenvolvimento de Barcelona; o Consenso de Pequim (em funcionamento informal desde o início dos anos 2000); o Consenso de Desenvolvimento de Seul (aprovado em 2010); e até mesmo experiências com novas métricas, como Felicidade Interna Bruta. Mas nenhum deles se revelou especialmente resiliente.
Na verdade, o espectro do Consenso de Washington continua nos assombrando. As negociações climáticas globais não poderiam ser mais importantes para o futuro do planeta e da civilização humana. No entanto, sempre que surge a questão do financiamento climático, os países em desenvolvimento são sujeitos ao mesmo tipo de tratamento humilhante que o Consenso de Washington uma vez prescreveu. Mesmo com o aumento das críticas ao “modelo chinês”, o entusiasmo sobre a Índia continua, teimosamente, a ser enquadrado em termos da possibilidade de ser a “próxima China”. E apesar das críticas amplamente aceitas ao PIB como medida do desenvolvimento econômico, ele ainda define os termos dos debates políticos.
O que seria necessário para finalmente exorcizar o fantasma? Entre as explicações sobre a razão pela qual o “Ocidente e o resto” divergiram historicamente – desde Economia e Sociedade de Max Weber até Armas, Germes e Aço de Jared Diamond – a hipótese mais influente centrou-se nas “instituições”. Instituições, Mudanças e Desempenho Econômicode Douglass North, O Mistério do Capital, de Hernando de Soto, e Porque as Nações Fracassam, de Daron Acemoglu e James Robinson apresentam argumentos convincentes que o desenvolvimento de uma economia depende de regras, normas e estruturas formais e informais.
O contexto para essas análises é um mundo onde direitos de propriedade seguros e contratos executáveis lubrificam as rodas do desempenho econômico. No entanto, os tipos de instituições de que necessitaremos para enfrentar os desafios do futuro – alterações climáticas, inteligência artificial, “corrida ao espaço”, pandemias – são fundamentalmente diferentes. Não só devem ser muito mais pró-sociais, orientados para o estabelecimento da cooperação internacional para resolver problemas de ação coletiva, mas, na sequência disso, provavelmente conferirão uma vantagem estrutural ao Sul Global.
O equilíbrio do poder mundial está mudando rapidamente. O Sul Global já é onde vive a maior parte da população mundial; e devido à sua população mais jovem, é onde reside o futuro do mundo. Na verdade, em 2023, o conceito de Sul Global – e seu possível papel na liderança global – foi considerado dominante. Para navegar neste novo mundo, precisaremos confrontar questões que o antigo consenso deixou de lado.
Por exemplo, existe mais de um caminho para o crescimento e o desenvolvimento? Existe uma forma de reinventar ou reestruturar a economia global, agora que ela se tornou uma fonte de insatisfação generalizada? Será que algumas das principais características do Sul Global – tais como suas culturas relativamente mais comunitárias – o tornam mais adequado para um papel de liderança na era atual? E mais importante, qual é mesmo o objetivo do desenvolvimento?
O Consenso de Washington nunca teve tempo para essas questões e seu fantasma continua a impedir a emergência de um novo paradigma de desenvolvimento baseado em contextos culturais e na cognição humana. O Consenso sobre o Desenvolvimento de Seul, com a sua abordagem pluralista, foi um passo promissor na direção certa. Mas agora precisamos de um Consenso da Alma que acomode as necessidades psíquicas das pessoas comuns, além das necessidades materiais agregadas dos países.
Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil
CAMBRIDGE – Em 1989, o economista britânico John Williamson batizou o que viria a ser a exportação intelectual que definiria a era da globalização: o Consenso de Washington. Inicialmente uma referência às políticas adotadas para enfrentar a turbulência macroeconômica na América Latina, o termo rapidamente se transformou nos canônicos “ dez mandamentos ” do desenvolvimento.
Durante pelo menos duas décadas depois disso, os evangelistas do “consenso” – o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Tesouro dos EUA (todos com sede em Washington) – pregaram a ortodoxia com zelo quase religioso. O fim da Guerra Fria significou que o evangelho poderia ser levado tanto aos países recentemente descolonizados (como “política de desenvolvimento”) quanto às “economias de transição” pós-comunistas (muitas vezes sob a forma de “terapia de choque”). O modelo ocidental – democracia liberal combinado com mercados livres – representou o “fim da história” e, uma vez que o Ocidente havia triunfado, tudo o que restou foi converter o “o que sobrou” à única fé verdadeira.
Trinta e cinco anos depois, temos amplas evidências para avaliar o histórico do Consenso de Washington. Uma conclusão clara é que sua abordagem de tamanho único frequentemente amplificou eventos macroeconômicos (como a crise financeira asiática de 1997) e reduziu as economias em desenvolvimento a locais para fábricas que exploram empregados. Esses países acabaram numa corrida para o fundo do poço, ao tentarem superar uns aos outros em termos de custos trabalhistas – o que significou salários mais baixos e menos segurança no trabalho. Tragédias como o colapso do Rana Plaza em 2013, que matou 1.134 pessoas e feriu outras 2.000, tornaram-se quase inevitáveis.
Além disso, nenhum desses países jamais se tornou uma história de sucesso. Os “milagres do desenvolvimento” que decisores políticos e acadêmicos agora fetichizam – Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, China, Índia – afastaram-se todos do Consenso de Washington ao tornarem o governo em um participante ativo no desenvolvimento. Alcançaram um crescimento rápido e não só fecharam a lacuna com muitas economias ocidentais, como até as ultrapassaram. A Índia ultrapassou agora o seu antigo mestre colonial, a Grã-Bretanha, para se tornar a quinta maior economia do mundo.
Entretanto, desde a crise financeira global de 2008, muitos países do Norte Global estão vivendo o que costumavam ser considerados “problemas do Terceiro Mundo”: crescimento em declínio, desigualdade galopante, instituições em falência, um consenso político fragmentado, corrupção, protestos em massa e sentimento antiglobalização. A brilhante linha vermelha que o Consenso de Washington pretendia traçar entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento tornou-se cada vez mais tênue.
Por volta de 2009, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown– seguindo os passos de influentes economistas como Joseph E. Stiglitz e Dani Rodrik – declarou morto o Consenso de Washington. É verdade que sua vida coincidiu com a criação do Índice do Desenvolvimento Humano (que as Nações Unidas vem produzindo desde 1990); os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e seu sucessor, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável; a Agenda de Desenvolvimento de Barcelona; o Consenso de Pequim (em funcionamento informal desde o início dos anos 2000); o Consenso de Desenvolvimento de Seul (aprovado em 2010); e até mesmo experiências com novas métricas, como Felicidade Interna Bruta. Mas nenhum deles se revelou especialmente resiliente.
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Na verdade, o espectro do Consenso de Washington continua nos assombrando. As negociações climáticas globais não poderiam ser mais importantes para o futuro do planeta e da civilização humana. No entanto, sempre que surge a questão do financiamento climático, os países em desenvolvimento são sujeitos ao mesmo tipo de tratamento humilhante que o Consenso de Washington uma vez prescreveu. Mesmo com o aumento das críticas ao “modelo chinês”, o entusiasmo sobre a Índia continua, teimosamente, a ser enquadrado em termos da possibilidade de ser a “próxima China”. E apesar das críticas amplamente aceitas ao PIB como medida do desenvolvimento econômico, ele ainda define os termos dos debates políticos.
O que seria necessário para finalmente exorcizar o fantasma? Entre as explicações sobre a razão pela qual o “Ocidente e o resto” divergiram historicamente – desde Economia e Sociedade de Max Weber até Armas, Germes e Aço de Jared Diamond – a hipótese mais influente centrou-se nas “instituições”. Instituições, Mudanças e Desempenho Econômicode Douglass North, O Mistério do Capital, de Hernando de Soto, e Porque as Nações Fracassam, de Daron Acemoglu e James Robinson apresentam argumentos convincentes que o desenvolvimento de uma economia depende de regras, normas e estruturas formais e informais.
O contexto para essas análises é um mundo onde direitos de propriedade seguros e contratos executáveis lubrificam as rodas do desempenho econômico. No entanto, os tipos de instituições de que necessitaremos para enfrentar os desafios do futuro – alterações climáticas, inteligência artificial, “corrida ao espaço”, pandemias – são fundamentalmente diferentes. Não só devem ser muito mais pró-sociais, orientados para o estabelecimento da cooperação internacional para resolver problemas de ação coletiva, mas, na sequência disso, provavelmente conferirão uma vantagem estrutural ao Sul Global.
O equilíbrio do poder mundial está mudando rapidamente. O Sul Global já é onde vive a maior parte da população mundial; e devido à sua população mais jovem, é onde reside o futuro do mundo. Na verdade, em 2023, o conceito de Sul Global – e seu possível papel na liderança global – foi considerado dominante. Para navegar neste novo mundo, precisaremos confrontar questões que o antigo consenso deixou de lado.
Por exemplo, existe mais de um caminho para o crescimento e o desenvolvimento? Existe uma forma de reinventar ou reestruturar a economia global, agora que ela se tornou uma fonte de insatisfação generalizada? Será que algumas das principais características do Sul Global – tais como suas culturas relativamente mais comunitárias – o tornam mais adequado para um papel de liderança na era atual? E mais importante, qual é mesmo o objetivo do desenvolvimento?
O Consenso de Washington nunca teve tempo para essas questões e seu fantasma continua a impedir a emergência de um novo paradigma de desenvolvimento baseado em contextos culturais e na cognição humana. O Consenso sobre o Desenvolvimento de Seul, com a sua abordagem pluralista, foi um passo promissor na direção certa. Mas agora precisamos de um Consenso da Alma que acomode as necessidades psíquicas das pessoas comuns, além das necessidades materiais agregadas dos países.
Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil