adebajo1_EDUARDO SOTERASAFP via Getty Images_peacekeepers EDUARDO SOTERAS/AFP via Getty Images

A crise da manutenção da paz em África

PRETÓRIA – No mês passado, o presidente da República Democrática do Congo, Félix Tshisekedi, exigiu que as Nações Unidas começassem a retirar os seus 17 mil militares de manutenção da paz do seu país até dezembro. Em junho, o regime militar do coronel Assimi Goïta, no Mali, fez a mesma exigência; a ONU vai concluir a retirada dos seus 12 mil soldados da paz daquele país até janeiro. Entretanto, a União Africana está a retirar as suas forças de manutenção da paz – mais de 15 mil militares – da Somália, devido à relutância dos governos ocidentais em continuarem a financiar a missão.

Estas saídas inoportunas irão agravar a instabilidade nas regiões mais voláteis de África: Sahel, Grandes Lagos e Corno de África. Por essa razão, põem em evidência a crise crescente da manutenção da paz em África.

Na origem desta crise está um paradoxo. As forças de manutenção da paz da ONU – 84% das quais estão destacadas em África – tendem a dispor de bons recursos, mas recusam-se frequentemente a empreender missões perigosas de aplicação da lei para proteger populações em risco. As forças de manutenção da paz africanas, pelo contrário, estão mais dispostas a fazer o que é necessário para impor a paz, mas raramente recebem os recursos logísticos e financeiros de que necessitam.

As forças de manutenção da paz da ONU têm um problema de credibilidade de longa data em África. Em 1961, o popular primeiro-ministro congolês, Patrice Lumumba, foi executado “debaixo do nariz” de uma missão de manutenção da paz da ONU dominada pelo Ocidente. Depois disso, muitos governos africanos opuseram-se ao destacamento de forças de manutenção da paz da ONU nos seus territórios. Burundi, Chade, Egito, Eritreia e Sudão expulsaramas tropas da ONU.

Ao fazê-lo, estes países podem ter desperdiçado coisas boas ao tentarem livrar-se de coisas indesejadas: a ONU desempenhou um papel fundamental no restabelecimento da paz e do regime democrático na Namíbia, em Moçambique e na Serra Leoa. Mas os governos africanos não duvidam só da eficácia das forças de manutenção da paz externas, também duvidam das suas intenções.

As suas suspeitas não são infundadas. O destacamento de tropas por parte de atores externos, como França e Estados Unidos, para países africanos, como Chade, Djibuti, Níger e Senegal, tem sido, frequentemente, mais uma intromissão interesseira do que um esforço genuíno para reforçar a segurança de África.

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França, em particular, é vista por muitos africanos como um país que utiliza as tropas de manutenção da paz da ONU, em grande parte, para promover os seus próprios interesses. Durante os 27 anos em que liderou o Departamento de Operações de Paz da ONU, foi acusada de enviar missões com interesses próprios para as suas antigas colónias, incluindo a República Centro-Africana (RCA), o Chade, a Costa do Marfim e o Mali. Não ajuda o facto de a operação antiterrorista de França no Sahel, que durou uma década, ter falhado completamente em impedir que o Estado Islâmico e a Al-Qaeda estabelecessem uma presença forte. As tropas francesas foram agora expulsas das bases em Burkina Faso, Mali e Níger.

De um modo mais geral, as forças de manutenção da paz da ONU são frequentemente vistas pelas populações locais – como no Sudão do Sul e na RCA – como observadores dos massacres e das deslocações e não como baluartes contra eles. Tal como os países ocidentais, os principais contribuintes não ocidentais para as forças de manutenção da paz da ONU – tais como Bangladesh, Índia, Nepal e Paquistão – tendem a recusar enviar as suas tropas para missões perigosas de aplicação da lei em África.

As populações africanas ressentem-se, também, do facto de uma grande parte dos mil milhões de dólares orçamentados anualmente para as grandes missões da ONU ser normalmente destinada a satisfazer as necessidades, por vezes extravagantes, dos próprios soldados da paz, em vez de reconstruir países devastados pela guerra. Como se isso não fosse mau o suficiente, tem havido numerosas alegações de abuso e exploração sexual por parte das forças de manutenção da paz da ONU.

E isto para não falar de forças externas como os mercenários russos do Grupo Wagner. O Grupo Wagner é um ator particularmente nocivo, mas exerce atualmente uma influência considerável no Mali e toma, em grande medida, a iniciativa na tomada de decisões na RCA.

Mas a crise da manutenção da paz em África também tem raízes locais, a começar pelas fraquezas institucionais do continente. África tem muitos estados fragilizados, assolados por uma má governação, um desenvolvimento socioeconómico estagnado e o fracasso dos atores externos em reforçar as instituições estatais de forma sustentável  – um pré-requisito para a paz a longo prazo. Em consequência, os países têm reincidido frequentemente em conflitos.

Até mesmo potências regionais como Nigéria e África do Sul – que lideraram missões no Burundi, Darfur, Libéria e Serra Leoa – debatem-se com fragilidades internas. Da mesma maneira, organizações regionais africanas incipientes, tais como UA, Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (CDAA) e Comunidade da África Oriental (CAO) apresentam fragilidades significativas.

Vale, no entanto, salientar que estas organizações fizeram enormes sacrifícios pela causa da paz: A CEDEAO perdeu mais de 2000 soldados de manutenção da paz em esforços que acabaram por ser bem-sucedidos na Libéria e na Serra Leoa, enquanto uma força de manutenção da paz maioritariamente da África Oriental perdeu mais de 3500 soldados na Somália desde a sua chegada em 2007.

Para ultrapassar a crise, os governos africanos têm de abordar as causas profundas dos conflitos, com a comunidade internacional de doadores a apoiar generosamente os verdadeiros reformadores democráticos nesses esforços. Para além disso, a ONU tem de fornecer contribuições avaliadas para apoiar as organizações regionais africanas que continuam a mostrar vontade de implementar a paz no continente. No entanto, há que ter cuidado para evitar o aparecimento de uma espécie de apartheid de segurança global, com os africanos a sacrificarem as suas vidas naquilo que deveria continuar a ser operações de paz conduzidas pela ONU.

Os países que enviam tropas para as missões da ONU têm de garantir que o objetivo da manutenção da paz em África e noutros locais é alcançar a paz e não o lucro, e têm de estar dispostos a permitir que as suas forças de manutenção da paz participem em operações arriscadas para alcançarem esse objetivo. Isto exigirá que os líderes moldem a opinião pública nacional, em vez de se curvarem perante ela.

Por último, a mudança no seio da ONU é vital. O Conselho de Segurança da ONU tem de alargar o número de membros permanentes, em particular a África e à América Latina. E, tal como o secretário-geral da ONU, António Guterres, propôs recentemente, as forças regionais de imposição da paz precisam de apoio avaliado pela ONU e de uma Comissão de Consolidação da Paz da ONU com mais recursos, que possa trabalhar em estreita colaboração com o Conselho de Segurança.

As propostas de Guterres baseiam-se na Agenda para a Paz, de 1992, do antigo secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, que estabeleceu um quadro para a instauração, manutenção e consolidação da paz após a Guerra Fria. Mais de três décadas depois, a implementação destas soluções continua a ser a melhor forma de promover efetivamente a paz no continente mais conflituoso do mundo.

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