CHICAGO – As tarifas abrangentes do presidente dos EUA, Donald Trump, sobre as importações do México, Canadá e China se fundamentam em bases legais instáveis. Mas é pouco provável que sejam derrubadas em um tribunal. Ao explorar uma lacuna entre a lei e o poder bruto, o governo Trump está desnudando a fraqueza da ordem constitucional americana.
A Constituição dos EUA atribui a autoridade sobre o comércio externo e a tributação apenas ao Congresso. Embora Trump tenha feito uma demonstração extravagante de ignorar leis devidamente promulgadas pelo Congresso nas últimas semanas, suas ordens tarifárias invocam a lei federal: a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (International Emergency Economic Powers Act - IEEPA, na sigla em inglês), de 1977. E, no entanto, a IEEPA não apoia as tarifas atuais de Trump.
A linguagem da lei deixa isso claro. Um presidente pode declarar “emergência nacional” para lidar com uma ameaça estrangeira “incomum ou extraordinária” à “segurança nacional, política externa ou economia” dos Estados Unidos. Feito isso, a IEEPA concede vastos poderes específicos de emergência, incluindo a autoridade para “regular” a “importação” de “qualquer propriedade”. Contudo, estes poderes adicionais valem apenas à emergência em questão; não podem ser usados para “qualquer outro fim”.
Assim, em janeiro, Trump declarou uma emergência “na fronteira sul”, citando a ameaça representada pelos cartéis, a migração e os narcóticos. Vamos tomar esta declaração pelo seu valor de face e supor que há uma crise na fronteira. Mesmo assim, os direitos aduaneiros impostos este mês não podem ser plausivelmente entendidos como uma resposta a essa crise.
Isto é mais óbvio no que se refere ao Canadá, país que quase não tem um papel no abastecimento do mercado americano de fentanil. A descontinuidade entre as vastas tarifas impostas ao Canadá e a emergência fictícia na “fronteira sul” é tão óbvia que as tarifas devem ser consideradas ilegais. O carácter intermitente destas tarifas sublinha sua falta de ligação racional a qualquer política específica.
A China é um caso mais complexo, mas o resultado é o mesmo. Embora a China seja uma fonte de precursores químicos para a produção de opiáceos, o governo do presidente anterior Joe Biden já garantiu um acordo com os chineses para limitar essas exportações. As tarifas contra a China, desconectadas de qualquer evidência de que o acordo anterior tenha lacunas, não podem ser apresentadas de forma crível como uma resposta à crise na fronteira sul. Como no caso do Canadá, as tarifas de Trump são obviamente uma resposta a outra questão.
At a time of escalating global turmoil, there is an urgent need for incisive, informed analysis of the issues and questions driving the news – just what PS has always provided.
Subscribe to Digital or Digital Plus now to secure your discount.
Subscribe Now
Mesmo no que diz respeito ao México, é justo perguntar se as tarifas têm mesmo como objetivo alterar as políticas do governo mexicano em matéria de opioides. Como a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, observou ao anunciar as contramedidas este mês, as apreensões de fentanil na fronteira já haviam caído 50% de outubro a janeiro. Além disso, de 2019 a 2024, quatro em cada cinco pessoas detidas nos postos fronteiriços por transportar fentanil eram cidadãos americanos.
Se havia alguma dúvida de que as últimas tarifas não têm de fato a ver com a “emergência” da fronteira sul, o próprio Trump abriu o jogo em fevereiro, quando disse que o objetivo é forçar os fabricantes a mudar suas fábricas para os Estados Unidos. Da mesma forma, ao justificar as tarifas contra o Canadá, ele não se queixou só das barreiras (inexistentes) para os bancos americanos que procuram entrar no mercado têxtil canadense; ele também associou explicitamente a política à sua ambição ilegal de forçar o Canadá a juntar-se aos EUA contra a vontade do país.
As próprias palavras do presidente são prova suficiente de que as tarifas de março são ilegais. Uma vez que não são respostas à “emergência” declarada na fronteira sul, a IEEPA proíbe de modo expresso e claro sua utilização.
É claro que a Casa Branca provavelmente argumentaria que as tarifas proporcionam uma vantagem sobre os governos que poderiam fazer algo para resolver o problema do fentanil. Mas permitir que os presidentes façam o que quiserem para criar influência em relação a uma emergência estritamente definida invalidaria a decisão do Congresso de especificar o foco e o âmbito dos poderes de emergência na linguagem da IEEPA. A exceção passaria a ser a regra.
Advogados recorrem com frequência a argumentos hipotéticos para sustentar tais argumentos. Porém, neste caso não é necessária qualquer hipótese. Ao responder à epidemia de opioides, Trump na prática imporia um novo imposto de mil dólares a todas as famílias americanas - o que equivale a acrescentar um ponto percentual à taxa marginal de imposto dos americanos. Nenhuma interpretação razoável da autoridade específica da IEEPA permite que o presidente desencadeie mudanças tão abrangentes.
No entanto, apesar da óbvia ilegalidade da política, é pouco provável que a autoridade de Trump seja testada de fato nos tribunais. Desde a década de 1980, os tribunais federais têm-se recusado terminantemente a avaliar alegações factuais subjacentes a uma declaração de emergência da IEEPA, e os juízes têm se dobrado para conceder ao presidente amplos poderes nestes contextos. Mesmo quando um presidente expressa um objetivo ilegal, o Supremo Tribunal tem mostrado disposição a fazer vista grossa. No caso da primeira proibição muçulmana da administração Trump, a Corte criou uma fina teia de casuística para suprimir e ignorar as muitas justificações xenófobas e intolerantes do presidente.
Pior, num desafio às tarifas de aço de Trump em 2018, um tribunal de circuito especulou vagamente sobre o poder constitucional “independente” do presidente sobre o comércio exterior. Na prática, conjurou do nada um poder presidencial completamente novo que apagou a autoridade clara e exclusiva do Congresso sobre o comércio externo e a tributação.
Por esta lógica, mesmo os limites mínimos impostos ao poder presidencial para reordenar o comércio externo - a um preço elevado para os contribuintes americanos - cairiam no esquecimento. No entanto, na última década, os tribunais têm se mostrado cada vez mais dispostos a ignorar o texto constitucional em prol de uma teoria ahistórica da presidência como a única e exclusiva âncora da democracia e das liberdades americanas.
Talvez não seja grande consolo aos governos e cidadãos estrangeiros confrontados com as tarifas erráticas e injustificáveis dos EUA saber que essas medidas provavelmente são ilegais. A recusa dos tribunais norte-americanos em enfrentar o blefe de Trump é um sinal da fragilidade da ordem constitucional americana e da falta de vontade dos juízes federais para enfrentar seu algoz.
To have unlimited access to our content including in-depth commentaries, book reviews, exclusive interviews, PS OnPoint and PS The Big Picture, please subscribe
Today's profound global uncertainty is not some accident of history or consequence of values-free technologies. Rather, it reflects the will of rival great powers that continue to ignore the seminal economic and social changes underway in other parts of the world.
explains how Malaysia and other middle powers are navigating increasingly uncertain geopolitical terrain.
US President Donald Trump’s import tariffs have triggered a wave of retaliatory measures, setting off a trade war with key partners and raising fears of a global downturn. But while Trump’s protectionism and erratic policy shifts could have far-reaching implications, the greatest victim is likely to be the United States itself.
warns that the new administration’s protectionism resembles the strategy many developing countries once tried.
CHICAGO – As tarifas abrangentes do presidente dos EUA, Donald Trump, sobre as importações do México, Canadá e China se fundamentam em bases legais instáveis. Mas é pouco provável que sejam derrubadas em um tribunal. Ao explorar uma lacuna entre a lei e o poder bruto, o governo Trump está desnudando a fraqueza da ordem constitucional americana.
A Constituição dos EUA atribui a autoridade sobre o comércio externo e a tributação apenas ao Congresso. Embora Trump tenha feito uma demonstração extravagante de ignorar leis devidamente promulgadas pelo Congresso nas últimas semanas, suas ordens tarifárias invocam a lei federal: a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (International Emergency Economic Powers Act - IEEPA, na sigla em inglês), de 1977. E, no entanto, a IEEPA não apoia as tarifas atuais de Trump.
A linguagem da lei deixa isso claro. Um presidente pode declarar “emergência nacional” para lidar com uma ameaça estrangeira “incomum ou extraordinária” à “segurança nacional, política externa ou economia” dos Estados Unidos. Feito isso, a IEEPA concede vastos poderes específicos de emergência, incluindo a autoridade para “regular” a “importação” de “qualquer propriedade”. Contudo, estes poderes adicionais valem apenas à emergência em questão; não podem ser usados para “qualquer outro fim”.
Assim, em janeiro, Trump declarou uma emergência “na fronteira sul”, citando a ameaça representada pelos cartéis, a migração e os narcóticos. Vamos tomar esta declaração pelo seu valor de face e supor que há uma crise na fronteira. Mesmo assim, os direitos aduaneiros impostos este mês não podem ser plausivelmente entendidos como uma resposta a essa crise.
Isto é mais óbvio no que se refere ao Canadá, país que quase não tem um papel no abastecimento do mercado americano de fentanil. A descontinuidade entre as vastas tarifas impostas ao Canadá e a emergência fictícia na “fronteira sul” é tão óbvia que as tarifas devem ser consideradas ilegais. O carácter intermitente destas tarifas sublinha sua falta de ligação racional a qualquer política específica.
A China é um caso mais complexo, mas o resultado é o mesmo. Embora a China seja uma fonte de precursores químicos para a produção de opiáceos, o governo do presidente anterior Joe Biden já garantiu um acordo com os chineses para limitar essas exportações. As tarifas contra a China, desconectadas de qualquer evidência de que o acordo anterior tenha lacunas, não podem ser apresentadas de forma crível como uma resposta à crise na fronteira sul. Como no caso do Canadá, as tarifas de Trump são obviamente uma resposta a outra questão.
Winter Sale: Save 40% on a new PS subscription
At a time of escalating global turmoil, there is an urgent need for incisive, informed analysis of the issues and questions driving the news – just what PS has always provided.
Subscribe to Digital or Digital Plus now to secure your discount.
Subscribe Now
Mesmo no que diz respeito ao México, é justo perguntar se as tarifas têm mesmo como objetivo alterar as políticas do governo mexicano em matéria de opioides. Como a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, observou ao anunciar as contramedidas este mês, as apreensões de fentanil na fronteira já haviam caído 50% de outubro a janeiro. Além disso, de 2019 a 2024, quatro em cada cinco pessoas detidas nos postos fronteiriços por transportar fentanil eram cidadãos americanos.
Se havia alguma dúvida de que as últimas tarifas não têm de fato a ver com a “emergência” da fronteira sul, o próprio Trump abriu o jogo em fevereiro, quando disse que o objetivo é forçar os fabricantes a mudar suas fábricas para os Estados Unidos. Da mesma forma, ao justificar as tarifas contra o Canadá, ele não se queixou só das barreiras (inexistentes) para os bancos americanos que procuram entrar no mercado têxtil canadense; ele também associou explicitamente a política à sua ambição ilegal de forçar o Canadá a juntar-se aos EUA contra a vontade do país.
As próprias palavras do presidente são prova suficiente de que as tarifas de março são ilegais. Uma vez que não são respostas à “emergência” declarada na fronteira sul, a IEEPA proíbe de modo expresso e claro sua utilização.
É claro que a Casa Branca provavelmente argumentaria que as tarifas proporcionam uma vantagem sobre os governos que poderiam fazer algo para resolver o problema do fentanil. Mas permitir que os presidentes façam o que quiserem para criar influência em relação a uma emergência estritamente definida invalidaria a decisão do Congresso de especificar o foco e o âmbito dos poderes de emergência na linguagem da IEEPA. A exceção passaria a ser a regra.
Advogados recorrem com frequência a argumentos hipotéticos para sustentar tais argumentos. Porém, neste caso não é necessária qualquer hipótese. Ao responder à epidemia de opioides, Trump na prática imporia um novo imposto de mil dólares a todas as famílias americanas - o que equivale a acrescentar um ponto percentual à taxa marginal de imposto dos americanos. Nenhuma interpretação razoável da autoridade específica da IEEPA permite que o presidente desencadeie mudanças tão abrangentes.
No entanto, apesar da óbvia ilegalidade da política, é pouco provável que a autoridade de Trump seja testada de fato nos tribunais. Desde a década de 1980, os tribunais federais têm-se recusado terminantemente a avaliar alegações factuais subjacentes a uma declaração de emergência da IEEPA, e os juízes têm se dobrado para conceder ao presidente amplos poderes nestes contextos. Mesmo quando um presidente expressa um objetivo ilegal, o Supremo Tribunal tem mostrado disposição a fazer vista grossa. No caso da primeira proibição muçulmana da administração Trump, a Corte criou uma fina teia de casuística para suprimir e ignorar as muitas justificações xenófobas e intolerantes do presidente.
Pior, num desafio às tarifas de aço de Trump em 2018, um tribunal de circuito especulou vagamente sobre o poder constitucional “independente” do presidente sobre o comércio exterior. Na prática, conjurou do nada um poder presidencial completamente novo que apagou a autoridade clara e exclusiva do Congresso sobre o comércio externo e a tributação.
Por esta lógica, mesmo os limites mínimos impostos ao poder presidencial para reordenar o comércio externo - a um preço elevado para os contribuintes americanos - cairiam no esquecimento. No entanto, na última década, os tribunais têm se mostrado cada vez mais dispostos a ignorar o texto constitucional em prol de uma teoria ahistórica da presidência como a única e exclusiva âncora da democracia e das liberdades americanas.
Talvez não seja grande consolo aos governos e cidadãos estrangeiros confrontados com as tarifas erráticas e injustificáveis dos EUA saber que essas medidas provavelmente são ilegais. A recusa dos tribunais norte-americanos em enfrentar o blefe de Trump é um sinal da fragilidade da ordem constitucional americana e da falta de vontade dos juízes federais para enfrentar seu algoz.
Tradução por Fabrício Calado Moreira