hausmann90_ GASTON DE CARDENASAFP via Getty Images_latinos for trump Gaston de Cardenas/AFP via Getty Images

Miami trunca Biden

CAMBRIDGE – Joe Biden conquistou uma vitória decisiva na eleição presidencial americana, derrotando Donald Trump por mais de seis milhões de votos em todo o país. Fortalecido pelos eleitores suburbanos, especialmente mulheres, o candidato democrata reconquistou a Pennsylvania, Michigan e Wisconsin, que Trump vencera em 2016, virou o Arizona e a Geórgia e conseguiu 306 dos 538 votos do colégio eleitoral.

Porém, um Estado crucial entre os de voto variado onde Trump se saiu melhor do que há quatro anos foi a Flória – especialmente suas áreas mais povoadas por hispânicos. O crescimento na margem de Trump na Flórida entre 2016 e 2020 é plenamente representado por seus ganhos em Miami.

Enquanto Biden obteve avanços importantes em outras partes da Flórida, em Miami – cidade que representa mais de 10% da população que vota no Estado -, os democratas viram sua vantagem encolher a meros sete pontos percentuais, abaixo da liderança de 30 pontos de Hillary Clinton em 2016. Embora o apoio ao Partido Republicano em Miami tenha crescido 60%, os democratas tiveram 1% menos votos lá do que em 2016, mesmo com um comparecimento 20% maior em todo o Estado e mesmo com os democratas tendo 21% mais votos do que em qualquer outra região da Flória em 2016.

O que explica esta disparidade?

Desde o início da campanha presidencial de 2020, Trump buscou demonizar o Partido Democrata associando-o aos elementos mais radicais de sua ala progressista, cujas posições – acabar com o financiamento da polícia, abrir as fronteiras, implementar um sistema de saúde de pagante único – teriam tornado o partido inelegível em grande parte do país. Mais importante, Trump identificou o Partido Democrata com o socialismo, usando a Venezuela como garota-propaganda do que é o socialismo no mundo real. A estratégia de Trump fracassou na maioria do Estado porque o candidato escolhido pelos democratas, Biden, havia desautorizado as políticas preferidas dos progressistas.

Em Miami a história foi outra. Merecidamente conhecida como “a capital da América Latina”, Miami e os latinos que moram lá continuam relativamente envolvidos com a política de seus países de origem. A Venezuela é um problema saliente em muitos países latinoamericanos, assim como a Espanha, dada a repercussão internacional da ruína do país, muitas vezes pior do que qualquer crise nacional na história recente da região.

HOLIDAY SALE: PS for less than $0.7 per week
PS_Sales_Holiday2024_1333x1000

HOLIDAY SALE: PS for less than $0.7 per week

At a time when democracy is under threat, there is an urgent need for incisive, informed analysis of the issues and questions driving the news – just what PS has always provided. Subscribe now and save $50 on a new subscription.

Subscribe Now

Outrora um modelo de democracia com uma imprensa livre e próspera, onde os candidatos à reeleição perderam disputas e entregaram o poder pacificamente seis vezes em 40 anos, a Venezuela regrediu a uma ditadura cleptocrática. Mais de 90% da população do país caminha para a pobreza, e o colapso no fornecimento de gasolina, óleo de cozinha, eletricidade, água corrente e serviços médicos já fez mais de cinco milhões de pessoas (15% da população) fugir, muitas delas à pé por longas distâncias e aguentando um sofrimento indescritível.

É fácil subestimar o choque cultural e político da ruína venezuelana nos países vizinhos e próximos, inclusive Miami, onde venezuelanos eram lembrados como turistas ricos mas de repente passaram a chegar como exilados traumatizados. Os venezuelanos se tornaram um alerta inevitável dos riscos de políticas de extrema-esquerda – como vem sendo meticulosamente documentado na Colômbia.

Que “socialismo” seja associado à Venezuela e à Suécia é prova da imprecisão da linguagem. Progressistas deveriam repudiar o regime venezuelano (e a maioria o faz): o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas já declarou que o regime chavista está cometendo crimes contra a humanidade, e o Tribunal Penal Internacional declarou sua convicção de que crimes sob sua jurisdição foram cometidos na Venezuela. Pelo contrário, o culto à personalidade, criminalização das dissidências, violações flagrantes de direitos humanos e abuso descarado das instituições políticas e eleitorais do regime são características compartilhadas por populistas de extrema-direita.

Porém, esta estratégia de polarização política permanece notavelmente eficaz nos países falantes do espanhol, onde campanhas de direita recorrem a ela para pintar qualquer candidato ou político à sua esquerda como “socialista” or “castro-chavista.” E também funcionou em Miami, com os desembarques de venezuelanos servindo de testemunhas da acusação.

Quando a Venezuela se torna um tema saliente em campanhas eleitorais, em geral ela o faz de dois jeitos bastante diferentes: nos planos de um candidato para lidar com o regime chavista e a crise de refugiados, ou se um candidato tem mais ou menos chances de levar o país na direção venezuelana. Ainda que os migrantes venezuelanos se preocupem relativamente mais com o primeiro, eleitores locais se preocupam quase que exclusivamente com o segundo jeito. Porém, considerando-se quão grotesca é a situação venezuelana, a ausência de uma postura ética e inflexível sobre como administrá-la abre uma lacuna moral e expõe um candidato a ser associado a ela.

Portanto, como os candidatos de centro-esquerda deveriam navegar a acusação de que vão transformar o país em uma Venezuela? O ganhador do Nobel Michael Spence introduziu o conceito de sinalização como uma solução para problemas de credibilidade. Um sinal é eficiente se tiver um custo exorbitante para o tipo de pessoa de quem você está tentando se diferenciar, mesmo que também tenha um custo exorbitante, mas menor, para você. Nesta situação, um bom sinal é um cujo custo é exorbitante para um verdadeiro aliado do chavismo.

Spence ajuda a explicar por que a estratégia de Biden não foi bem-sucedida em Miami. Biden de fato propôs status de proteção temporária a venezuelanos fugindo do chavismo, e acertadamente acusou Trump e os republicanos de não oferecê-lo. Porém, embora o SPT seja ótimo para ajudar refugiados venezuelanos nos EUA, não é algo que possa ajudar os venezuelanos a recuperar o lar que perderam, e o fracasso de Biden em se comprometer de modo firme com uma transição democrática rápida na Venezuela facilitou para que os eleitores acreditassem que ele não estava tão indignado, afinal.

A eleição acabou, mas a catástrofe na Venezuela não vai desaparecer. Pelo contrário, além do colapso de 2014-19, o Fundo Monetário Internacional espera que o PIB venezuelano encolha 25% só neste ano – mais que o dobro das perdas do próximo pior país da região. A crise humanitária e de refugiados irá piorar no governo Biden, tornando-a um dos primeiros testes de política externa de sua presidência.

Biden tem a chance de usar o apoio doméstico bipartidário e uma relação cooperativa “A América está de volta” com os aliados de sempre, especialmente na Europa, para pressionar o regime venezuelano até o país aceitar eleições livres e justas. Se Biden ajudar a salvar a Venezuela, fará um bem enorme ao país e a uma região que já foi castigada pela crise dos refugiados. Não só isso, um sinal deste também desarmaria uma estratégia manipuladora de direita que acabou entregando a Flórida ao Partido Republicano.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

https://prosyn.org/Su3kQyBpt